Da ficção do que nos dizem os decisores da política económica ao que eles pretendem alcançar – um bilhete postal para os nossos dirigentes políticos lerem — Texto 5. Porque é que a Europa se vai empobrecer e em grande velocidade.  Por Aaron Bastani

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

6 min de leitura

Texto 5. Porque é que a Europa se vai empobrecer e em grande velocidade

A sua prosperidade baseava-se na China e na Rússia – e não poderá manter-se

 Por Aaron Bastani

Publicação original por  em 19 de Outubro de 2022 (ver aqui)

Republicado por  em 25 de Outubro de 2022 (ver aqui)

 

Fila de motoristas para combustível em Paris, Outubro de 2022. Samuel Boivin/NurPhoto

 

Na semana passada [10 de Outubro], Josep Borrell, Vice-Presidente da Comissão Europeia, fez uma das declarações mais importantes de 2022. Enquanto o governo britânico de Liz Truss tentava imitar as políticas de Margaret Thatcher, e os apoiantes da oposição trabalhista sonhavam com um regresso a 1997 (data de uma vitória esmagadora de Tony Blair), foi preciso um eurocrata para reconhecer algumas verdades inconvenientes.

A principal observação de Borrell é bem evidente desde há uma década, mas a classe política só agora se apercebe disso: “A nossa prosperidade tem sido baseada na energia barata da Rússia”, disse ele, antes de acrescentar: “Os baixos salários dos trabalhadores chineses fizeram muito mais […] para manter a inflação sob controlo do que todos os bancos centrais juntos”. Borrel resumiu então o modelo económico europeu dos últimos 30 anos numa frase breve: “A nossa prosperidade baseou-se na China e na Rússia – energia e mercado”.

Vindo de um tecnocrata de Bruxelas, esta declaração é, no mínimo, impressionante. Os combustíveis fósseis baratos são uma coisa do passado, tal como os bens de consumo baratos. Nos últimos 30 anos, enquanto a Europa continental se tornou dependente do gás russo (felizmente a Grã-Bretanha não), também desfrutou de uma inflação baixa graças às importações da China, que se tornou a fábrica do mundo – fornecendo gadgets aos países mais ricos do mundo. Tal como no caso do gás russo, esse período – quando aqueles com baixos rendimentos podiam pelo menos aceder a uma panóplia de aparelhos de consumo – está a desaparecer rapidamente.

Na Grã-Bretanha, este período, desde os anos 1990 até à pandemia do Covid-19, foi crucial para o fenómeno político do Blairismo – que era mais uma questão de oportunidade histórica do que das competências do New Labour ou do Banco de Inglaterra. Assim, o baixo crescimento dos salários foi mitigado por uma súbita abundância de bens baratos, especialmente de produtos eletrónicos, e pela expansão do crédito. Na terminologia marxista, este sistema económico, globalizado e cada vez mais baseado na dívida, foi a base económica que permitiu a super-estrutura do “fim da história” (para os marxistas, a super-estrutura refere-se às instituições políticas e à ideologia de uma época, que é determinada pelas relações de produção, chamadas “a base”). É significativo que os centros de reflexão ou os académicos já tivessem reconhecido o fim desta era – mas fazê-lo um estadista à frente da UE é extraordinário.

As más notícias não terminaram aí, uma vez que Borrell continuou a sublinhar como a defesa da Europa continental estava dependente dos EUA. Isto também tem consequências para a segurança energética, com Borrell desejoso de sublinhar que a dissociação dos combustíveis fósseis russos não deveria significar uma maior subordinação a Washington. “O que aconteceria amanhã se os Estados Unidos, com um novo presidente, decidissem não ser tão amigáveis com os europeus?” disse ele. “É fácil imaginar a situação em que a nossa excessiva dependência do GNL (gás natural liquefeito) importado dos EUA também constituiria um grande problema”. Para os atlantistas, esta é uma questão crucial: é desejável colocar o nosso destino nas mãos de um Donald Trump ou de um Ron DeSantis [governador republicano da Florida, fervoroso apoiante de Donald Trump e potencial candidato em 2024, nota do editor]? Queremos que alguém como Mike Pompeo decida se a Europa pode ou não manter-se aquecida? Depender de um poder estrangeiro tão profundamente dividido, não é isento de riscos.

Borrell também sublinhou os desafios políticos, tanto internos como externos, que a Europa enfrenta. Internamente, o perigo vem da contínua ascensão da extrema-direita, de Giorgia Meloni em Itália a Viktor Orban na Hungria e o partido Vox em Espanha. Ao contrário do discurso clássico de Bruxelas, Borrell não atribuiu este fenómeno à influência de pérfidas potências estrangeiras, afirmando que a popularidade de tais partidos correspondia à “escolha do povo” e não à “imposição de qualquer poder”. Estas palavras foram claramente dirigidas ao centro do espectro político, que tende a ser cada vez mais conspiratório, vendo a mão de Moscovo em todo o lado. Se a extrema-direita está a ganhar terreno, é porque as crises sociais e económicas não foram resolvidas e não por causa das fábricas de histórias em São Petersburgo – mesmo que a inteligência liberal gostasse que assim não fosse.

A nível externo, a Europa é confrontada com a ascensão do nacionalismo radical e das formas de imperialismo do século XIX que envolvem a anexação. Isto não se limita à Rússia, que depois de anexar a Crimea em 2014 acaba de capturar território na Ucrânia oriental, mas também à ocupação turca em curso do norte da Síria – um território que o Ministro do Interior turco Süleyman Soylu declarou em 2019 como “parte da pátria turca”. Ancara também ameaçou invadir as ilhas gregas no Mar Egeu. O declínio da superpotência americana significa que é provável que entremos numa nova fase, na qual a apropriação de terras é acrescentada a um mundo multipolar.

Tudo isto supõe uma visão profundamente sombria para as capitais europeias, incluindo Londres. À medida que o modelo energético do continente se desintegra e face à inflação mais alta das últimas décadas, a dissociação da China parece exacerbar o problema. Quando isto acontecer, será um terramoto económico para o consumidor europeu, por muito fácil que resulte para políticos como o conservador britânico Iain Duncan Smith falar com dureza. A indústria automóvel alemã está em desvantagem por causa do aumento dos preços da energia? Certamente. O mesmo se aplica a outros países, como França e Itália, que já viram a ruína das suas indústrias transformadoras neste século. Mas acrescente-se a isto o desaparecimento de bens de consumo baratos – que têm servido como paliativo durante décadas de estagnação salarial – e temos como inevitável uma enormíssima onda de descontentamento. Em suma, os europeus vão ficar mais pobres muito rapidamente. Os Invernos frios são apenas o começo.

Acrescente-se a isto os outros desafios que a Europa enfrenta, tais como o envelhecimento da população e o fraco nível de inovação. Não que a Europa continental se afunde de repente – claro que continua incrivelmente rica – mas tornar-se-á relativamente mais pobre. O prestígio das suas capitais diminuirá, exceto como destinos turísticos, enquanto o apelo global da sua cultura e do seu modelo social também irá ser minado. Os centros globais de pessoas, ideias e energia estarão localizados noutros lugares – principalmente na América do Norte e na Ásia. A Europa tornar-se-á a Veneza dos continentes: bela mas ultrapassada, um museu e não um ator da história.

Para o Reino Unido, agora fora da UE, isto é verdade de duas maneiras. O país é um grande importador líquido de alimentos e combustíveis fósseis, ao mesmo tempo que tem uma classe política que – ao contrário de pelo menos alguns no continente – se recusa a levar a sério uma política industrial. De momento, o reflexo dos Conservadores britânicos é aumentar os cortes fiscais, enquanto os Novos Trabalhistas insistem em como a globalização é uma coisa boa. No final, nenhum dos dois irá aumentar o nível de vida: os mercados punem os zelotes dos primeiros, enquanto a globalização se desmorona por todo o lado. O confronto com a Rússia é apenas o início de um colapso mais amplo que nenhuma das partes tem a coragem de admitir.

A inflação veio para ficar e, como Borrell reconhece, são necessárias respostas sérias às questões de energia, comércio, crescimento e segurança. Em cada área, o senso comum dos últimos trinta anos evaporou-se. Haverá um político de estatura no Reino Unido suficientemente corajoso para o dizer? [N.T. E na União Europeia haverá?]. Não contamos com isso. Um estado bipartidário, com um sistema hierárquico de whips [dirigentes de cada partido encarregados de controlar as presenças e vigiar a disciplina de voto dos deputados do seu partido] que esmaga a dissidência, significa que a liberdade de pensamento é uma mercadoria rara em Westminster. No entanto, nunca foi tão necessária.

 

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O autor: Aaron Bastani [1983-] é um jornalista e escritor britânico. Foi co-fundador da organização de meios de comunicação social de esquerda Novara Media em 2011, e já hospedou e co-organizou muitos dos seus podcasts e vídeos. Após um vídeo de 2014 para a publicação, popularizou o termo “comunismo de luxo totalmente automatizado”, que descreve uma sociedade pós-capitalista na qual a automatização reduz grandemente a quantidade de trabalho que os humanos precisam de fazer. Escreveu um livro em 2019, “Fully Automated Luxury Communism” (Comunismo de Luxo Totalmente Automatizado), sobre o assunto. Bastani também escreveu para The Guardian, London Review of Books, openDemocracy and Vice, e é conhecido pela sua actividade no Twitter. Concluiu uma graduação e um mestrado no University College London e é doutorado (Strike! Occupy! Retweet!: The Relationship Between Collective and Connective Action in Austerity Britain) pelo Royal Hooloway, University of London.

 

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